Quem conta um conto…

A realidade só não basta

Era o final de um dia seco e ultimamente nem tão estranhamente quente para um mês de julho. Parei no alto da Ilha Porchat em São Vicente, São Paulo e desci do carro deixando a porta aberta, pois queria continuar a ouvir a música que estava tocando: Shadow Magnet da Lisa Gerrad. O aproximar da noite já trazia uma brisa sul bem fresca e junto, sensação de alivio e tranqüilidade. Boas lembranças. Paz de espírito. Bom e contemplativo momento.

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Parece?

Achei que não. Sabia que não era possível capturar exatamente toda essa sensação num fotograma. Então, mudei a configuração do balanço de brancos e optei pela longa exposição.

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Era essa a imagem real? Não, mas a de cima sim. Mas era esse o conjunto de sentidos que havia naquele instante. Pode não estar claro, nem extramente fiel, mas foi minha forma de tentar aproximar quem no futuro visse a imagem daquele momento. A interpretação será sempre pessoal. E tudo bem se você não gosta da música (não é muita gente que gosta mesmo…).

Pequenos exageros

Muito comum é o ato de exagerarmos para contar certos acontecimentos que nos marcaram de alguma forma. Ao descrever um acidente de trânsito, um momento especial com alguém, um lugar fantástico que conhecemos, sempre colocamos alguns ingredientes distorcidos, inundamos de superlativos e tentamos impressionar o interlocutor da mesma forma que nos impressionamos diante do acontecimento. Ou seja, aplicamos “dramaticidade” à história.

Na verdade o acidente nem foi tão violento assim, tão pouco o programa daquela noite despertou sensações inesquecíveis e para aquela praia parecer o paraíso, precisava se ver livre de alguns mosquitos e daquele pessoalzinho que fazia a maior sujeira.

E por que fazemos isso? Simplesmente porque ao transmitir uma informação vivenciada, ela perde intensidade de relevância para o receptor da mensagem. Isto é natural, pois era preciso estar no lugar, sentir a rotina quebrada por algo novo, estar envolto em determinado estado de espírito ou ter a mesma bagagem sensitiva para compartilhar as mesmas situações. E para chegar a um nível aproximado de perplexidade, acrescentamos ou omitimos elementos, exageramos para tentar trazer nosso interlocutor para dentro de nossos sentidos despertados in loco, ao vivo.

Isso pode ter muito a ver com a fotografia também. Desde que consideremos sempre que não é a simples captura de uma imagem. Esse conceito vem do fotojornalismo, onde é necessário contar uma história em um único disparo, em um único quadro. O fotojornalista procura obter ângulos e planos que denotem alguma seqüência de leitura. Sim, fazemos isso quando vemos uma foto que nos induza a tal sequência, observamos um elemento de cada vez que estará disposto de forma a entender como o acontecimento se deu, de acordo com a capacidade e talento do fotógrafo. Mas o jornal precisa vender, e para vender deve criar um interesse. E aí entra a dramatização de uma cena. Quantas vezes meia dúzia de foliões dançavam carnaval em meio a uma multidão inerte, mas o fotógrafo caprichou num ângulo que nos fizesse ter a impressão que esta meia dúzia era um pequeno fragmento de uma massa de pura animação? Ou fez com que uma montanha de lixo dominasse uma paisagem colocando-a na maior área do quadro, quando na verdade era apenas um pequeno montinho? Ou vice-versa! Isolou uma pequena porção bela e limpa de um local sem graça e dominado pela sujeira?

Esses recursos só valorizam um trabalho fotográfico e não precisam se limitar ao fotojornalismo. Diante de um bonito entardecer, naquela paisagem de cair o queixo, respirando a brisa da noite que vem chegando, após um super dia, numa viagem, ou ao contrário, relaxando de problemas diversos, ouvindo o som do mar ou os sons da mata, ocorrem pensamentos, lembranças e sensações. E o que podemos registrar deste momento? Apenas a imagem. E todo o resto será indescritível para quem ver esta imagem  numa tela de computador ou numa ampliação fotográfica. E se faltar alguns recurso técnicos elementares, nem a beleza da imagem vamos capturar. Mas é possível dramatizar isso, levar a fotografia além do simples registro, criar ambientes surreais e surpreendentes. Pode não ser o fiel retrato da realidade visual, mas pode ser exatamente o que fotógrafo sentiu naquele instante. Tudo vai depender de seu conhecimento técnico, talento, criatividade e vontade de se expressar. Isto é a linguagem fotográfica de cada um, e é o que personifica o trabalho.

Publicado por

Marcelo dos Santos

Diretor de Arte e Fotógrafo

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