Somos todos fotógrafos, é óbvio!

©2010 Marcelo dos Santos

Este post é uma gentil contribuição da socióloga Maria Elisa a este blog. Nasceu de uma conversa via web sobre ética e os rumos da profissão de fotógrafo, que passa por um processo complicado que já ocorreu com muitas outras: A popularização e a grande quantidade de entrantes facilitada pela tecnologia. O texto que segue é de autoria dela e o reproduzo integralmente:

Tarefa difícil é a de desconstruir o óbvio. Apontar e defender outro ponto de vista diante daquilo que parece saltar aos olhos. Nem sempre convence, quase nunca agrada.

Pensemos na seguinte situação: Durante muitos séculos os homens se acostumaram a olhar para o céu e ver o sol descrever uma trajetória. Óbvio ululante que o sol se deslocava de um lado para o outro no horizonte, enquanto a Terra inerte acompanhava este movimento dias e dias ad infinitum.

Quem ousaria afirmar que aquele fenômeno poderia não ser exatamente aquilo que parecia ser? Ah sim! Os bruxos e feiticeiras queimados nas fogueiras. Estes sim, os loucos, só eles, os que estão fora da realidade poderiam afirmar que o óbvio, ainda que ululante, poderia ser questionado. A quem interessaria esta nova verdade? Ou melhor, a quem não interessaria uma outra realidade? Sabemos o fim desta história, muito embora ainda hoje dizemos: – O sol nasce a leste e se põe a oeste.

Será que não seria importante voltarmos a questionar os óbvios? Quantos óbvios há em sua realidade cotidiana? Quandos deles você ouviu serem afirmados esta semana? É! Quantos deles você carrega?

Vimos na modernidade os campos da ciência e da tecnologia avançarem numa aceleração fabulosa, e não nos demos conta de que, concomitante a isto, os campos da estética e da ética não conseguiram alcançar esta mesma velocidade, tampouco percebemos que a ética e a estética não puderam digerir e compreender estas novas realidades. O fato é que razão, sensação e emoção se distanciaram a ponto de desaprenderem a dialogar dentro de nós mesmos. Apesar disto, nós, estes seres humanos fragmentados, somos aqueles que se utilizam de toda esta parafernalha criada, ou seja, por traz de todos os trecos e tralhas aperfeiçoados que criamos há um ser humano no comando. Ser humano? Sim, sim, aquele ser capaz de reunir a técnica, a estética e a ética num equilibrio harmônico. Será?

É um alivio ver que a tecnologia e a economia propiciaram à boa parte de população mundial o acesso a inúmeros instrumentos, excelente constatar que há um avanço real na democratização do conhecimento e de sua aplicação efetiva, não ousariamos dizer o contrário. Porém há que se levar em conta a forma da utilização e dos meios de acesso. Quem? Como? Quando? Por que? Com qual finalidade? Nem tudo ficou claro, ainda não resolvemos uma série de interdependencias. Não resolvemos por exemplo, se a energia atômica deve ser utilizada para construirmos usinas e dar suporte à sobrevivência ou se esta energia pode ser direcionada à confecção de ogivas nucleares, ambas existem, estão aí à disposição. Não decidimos ainda se devemos manipular virus e bactérias com o intuito de produzirmos novas vacinas e antibióticos ou se criamos bombas biológicas, bombas quimicas… Vai um antraz aí?

A grande questão em jogo não é a questão científica, mas apenas e tão somente a ética.

A ética deveria permear todo e qualquer fazer humano, em toda e qualquer área. Sabemos que inúmeras profissões são resguardadas, reguladas por leis, regras e códigos de conduta. A ética pode se utilizar destes meios institucionalizados, mas ela é maior do que os meios.  Percebemos o quanto a falta de ética consegue burlar os meios, eles inibem a conduta irregular mas não a eliminam. A ética é construída socialmente, de tempos em tempos é revista e reconstruída. Temos que discutir arduamente sobre ela para podermos reajustar as leis, as regras e os códigos de conduta de acordo com as mudanças sociais. As transformações sociais desencadeadas pelas mudanças tecnológicas fazem com que a ética permaneça sempre num descompasso com a realidade. Afinal, que ética queremos? O que reconhecemos como ética? Não basta apontarmos o descompasso, não basta apontarmos sua falta, temos que firmar novos compromissos com ela. Temos que resolver o que queremos e como queremos. Quando isto vai acontecer?

Várias são as profissões onde o controle da conduta é mais explicito, como no caso da medicina. Ainda que estejamos acostumados a ver tantas aberrações, há sansões pontuais quando, por exemplo, uma esteticista realiza uma lipoaspiração, quando é denunciada, claro. Mas e no caso de tantas outras profissões, como funciona? Funciona? É óbvio que deveria funcionar! Óbvio? Mas não funciona. E não funciona muitas vezes nem tanto pela falta de regras, mas pela absoluta falta de percepção de muitas pessoas de que aquele fazer “é” uma profissão.

Por isto digo: – Somos todos fotógrafos! Não somos? É óbvio que somos!

O louvável e necessário acesso às novas tecnologias tornou difuso e confuso determinarmos os limites e delinearmos os parâmetros em várias, inúmeras profissões, como no caso, a do fotógrafo. Foi assim com o designer, quando uma multidão começou a “desenhar” no computador, ou o carpinteiro, com tantos “faça você mesmo” e etc. Algumas profissiões desapareceram, outras se pulverizaram na sociedade e algumas mudaram simplesmente.

Nossos celulares, nossas câmeras e nossos extraordinários equipamentos fotográficos dominaram de tal ordem este universo que ficou difícil compreendermos e sabermos lidar com o que seria a conduta ética nesta profissão. Como estabelecer os parâmetros e fazê-los valer efetivamente.

Quanto mais disponibilidade financeira tanto maior o acesso a equipamentos fantásticos, aqueles que parecem realizar os trabalhos sozinhos. Parecem. Aprendemos há séculos que as aparências enganam, mas ainda não soubemos lidar com esta percepção. Ainda não sabemos lidar com os óbvios e nos deixamos enganar por eles. A razão, a sensação e a emoção vivem numa luta inglória, conduzindo a técnica, a estética e a ética com velocidades incompatíveis.  Pior, tornamos seus campos paralelos e por conta disso não se cruzam mais. Pode haver um ser humano que não tenha mente, corpo e coração? Creio que não, e por que então dissociamos razão, sensação e emoção? Em outras palavras, dissociamos a técnica da estética e da ética. Que tipo de seres humanos nos tornamos? E o que queremos? Queremos mais e mais trecos e tralhas, que sejam cada vez mais fantásticos e que  possam maquiar tecnicamente nosso trabalho, inflando assim a sensação de que ainda estamos no comando?

Mas que bom podermos sair por aí fotografando tudo e todas as coisas, até invadindo a privacidade alheia. Aliás, isto rende um bom recurso financeiro. Não podemos? É óbvio que podemos!

Podemos sair por aí cobrando por este fazer com ou sem qualidade alguma? Podemos enganar as pessoas com a maquiagem tecnológica? Com nossos mega equipamentos? É óbvio que sim! Afinal quem sabe o que é estética? Quer dizer então que podemos sair por aí destruindo definitivamente a profissão de fotógrafo? Claro que sim! Como já fizemos com inúmeras outras. Alguém ainda é fotografo? Ah! Todos somos! Mas, espere um instante, e aqueles  que verdadeiramente investiram numa formação, os que lutaram para se aperfeiçoarem? E os que buscam construir um espaço digno de trabalho? Existem leis que efetivamente os preservem? Aonde está o código de ética da profissão? Quantos fotógrafos declaram sua profissão, digo, em documentos, cadastros e etc. No banco?

Sabemos que a lógica de Mercado invadiu todas as áreas, constatamos que as artes, a cultura de forma geral, foram inundadas, absorveram a mesmíssima lógica, mas, será que este fato isenta a humanidade inteira de reconstruir novos parâmetros éticos? Novas regras? Leis? Será que a cegueira dos óbvios nos tornou menos humanos? Teremos que nos deixar atingir por muitos tipos de bombas até que possamos resgatar em cada um de nós a nossa própria humanidade?

Meus caros fotógrafos! Não desanimem! Olhem em volta, as livrarias estão repletas de lixo, mas nunca deixamos de ler autores extraordinários. O massacre da indústria musical não foi o bastante para emudecer obras encantadoras. Sonhamos atravéz da música em pleno séc XXI! Isto não vai acabar nunca. As profissões que dependem potencialmente de talentos pessoais insubstituíveis sobrevivem, porém há que se saber sobreviver. Só os que compreenderem que é necessário agregar as possibilidades técnicas à sensibilidade. Ah esta sim! A sensibilidade, algo humano, extremamente humano. A habilidade de sobreviver não está apenas concentrada na razão, mas principalmente na adaptação ao meio, pense nisto!

Mesmo que muitos fotógrafos ainda hoje tenham que exercer outras profissões para sobreviverem, pois que a falta de regulamentação da profissão os tornem marginais ao sistema,  inúmeros serão os bons trabalhos fotográficos preservados, propagados e inaltecidos. A arte sempre soube sobreviver ao Mercado, acreditem!

Quanto a nós todos, fiquem tranquilos também, num futuro que já bate à porta, nos tornaremos cineastas, é óbvio! E deixaremos os fotógrafos definitivamente em paz.

Ah! Já ia me esquecendo de dizer. Não sou fotógrafa. Não tenho uma câmera, não uso este recurso do meu celular, e o que é mais anormal, sempre fujo das fotografias…bem, agora sim, depois da minha confissão, creio que posso queimar na fogueira.

Publicado por

Marcelo dos Santos

Diretor de Arte e Fotógrafo

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